Nessa carta, há um trecho que diz:
"Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal
que parece, infelizmente, prevalecer no mundo,
mesmo naquele mal que me mataria cegamente."
Essa citação tem algo de muito especial. É a nossa compreensão/fé budista de que tudo o que eu vejo, percebo e experiencio fazem parte da minha mente. E se fazem parte de minha mente, fazem parte de mim. É minha responsabilidade.
"Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal...", porque o mal aparece para mim. Se aparece para mim, há causas interiores em minha mente para que ele surja à minha percepção, como uma aparência... como num sonho.
Ainda ontem, me aconteceu uma coisa muito interessante. Na minha vizinhança, os vizinhos começaram a brigar. Palavras duras, feias. Comecei então a meditar: o que eu percebo não está separado da minha mente que percebe. Logo, essas palavras duras fazem parte da minha mente, porque estão aparecendo para ela.
Comecei, então, a recitar o verso de confissão da Prece dos Sete Membros: "Confesso os meus erros em todos os tempos... confesso os meus erros em todos os tempos... confesso os meus erros em todos os tempos...".
Em pouco tempo, a discussão acabou. Porque? Porque eu purifiquei a causa para perceber pessoas brigando. Pessoas brigando não existem independente da mente que percebe pessoas brigando. Como num sonho. (cf. citação do Sutra Rei da Concentração, no livro Compaixão Universal)
É um ensinamento muito profundo, que une a lei do carma com a sabedoria que entende a vacuidade, como duas faces de uma mesma moeda.
A frase "Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal..." é a premissa necessária para o que Dom Christian de Chergé escreve depois:
"Gostaria que, quando vier o tempo, ter o momento de lucidez
que me permitira pedir o perdão de Deus
e de todos os seres humanos meus amigos,
e ao mesmo tempo perdoar com todo meu coração aquele que me matará."
Quando nos vemos nos outros, o perdão surge espontaneamente. É um reconhecimento difícil reconhecer que todos nós temos o potencial para fazer ações más. É só as circunstâncias se reunirem... Esse reconhecimento é difícil porque fere nossa autoimagem e o nosso orgulho. Mas todos os santos que já passaram por este mundo, budistas ou não, tinham como prática essencial a humildade. O sábio, na humildade, sabe que é capaz de tudo. Por isso, ele toma providências rezando, meditando, buscando refúgio, purificando etc. Ele só irá parar de fazer isso quando atingir a meta final. Mas quando atingi-la, continuará fazendo não para si próprio, mas para dar exemplo aos outros, encorajando-os a seguirem esse caminho.
Quando reconhecemos em nosso coração todo o potencial do mal que ainda abrigamos, e que o mal que percebemos e experienciamos é apenas uma projeção cármica desses potenciais, nos sentimos aliviados e em paz, porque há uma esperança! E a esperança sou eu mesmo. Os potenciais de maldade podem ser purificados. Mas para isso, primeiro eu tenho que acreditar que eles existam em mim, tenho que reconhece-los.
Os outros são apenas projeções do meu carma. Quando alguém me trata mal ou me trata bem, é apenas a projeção do meu carma, é o meu carma amadurecendo, ora negativamente ora positivamente.
O meu carma me mostra como eu fui em vidas passada. Talvez isso fira o nosso orgulho. É por esse motivo que o sábio é humilde. Há uma música que diz: "Se todos fossem iguais a você...". Mas do ponto de vista do carma, todos são iguais a mim, ou melhor, todos são iguais ao que já fui. Ou seja, já que tudo depende do carma, a maneira como as pessoas me tratam mostra o jeito que eu tratava esta ou aquela pessoa em vidas passadas.
Então, vai aqui uma sugestão de prática: sempre quando virmos alguma situação errada acontecendo, nos implicarmos nela pensando: "Se está aparecendo para mim, eu tenho algum nível de responsabilidade [cármica] sobre o que está acontecendo". E então, fazer uma prática de purificação: recitar o mantra de Vajrassatva, gerar os quatro poderes oponentes, recitar a prece de confissão descrita acima.
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