domingo, 12 de junho de 2011

Ainda sobre o filme "Homens e deuses" (II)

O monge trapista Dom Christian de Chergé foi um dos monges brutalmente assasinados na Argélia, nos anos 90. Pouco antes de falecer, ele deixou uma carta testamento muito bonita.

Nessa carta, há um trecho que diz:

"Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal
que parece, infelizmente, prevalecer no mundo,
mesmo naquele mal que me mataria cegamente."


Essa citação tem algo de muito especial. É a nossa compreensão/fé budista de que tudo o que eu vejo, percebo e experiencio fazem parte da minha mente. E se fazem parte de minha mente, fazem parte de mim. É minha responsabilidade.

"Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal...", porque o mal aparece para mim. Se aparece para mim, há causas interiores em minha mente para que ele surja à minha percepção, como uma aparência... como num sonho.

Ainda ontem, me aconteceu uma coisa muito interessante. Na minha vizinhança, os vizinhos começaram a brigar. Palavras duras, feias. Comecei então a meditar: o que eu percebo não está separado da minha mente que percebe. Logo, essas palavras duras fazem parte da minha mente, porque estão aparecendo para ela.

Comecei, então, a recitar o verso de confissão da Prece dos Sete Membros: "Confesso os meus erros em todos os tempos... confesso os meus erros em todos os tempos... confesso os meus erros em todos os tempos...".

Em pouco tempo, a discussão acabou. Porque? Porque eu purifiquei a causa para perceber pessoas brigando. Pessoas brigando não existem independente da mente que percebe pessoas brigando. Como num sonho. (cf. citação do Sutra Rei da Concentração, no livro Compaixão Universal)

É um ensinamento muito profundo, que une a lei do carma com a sabedoria que entende a vacuidade, como duas faces de uma mesma moeda.

A frase "Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal..." é a premissa necessária para o que Dom Christian de Chergé escreve depois:

"Gostaria que, quando vier o tempo, ter o momento de lucidez
que me permitira pedir o perdão de Deus
e de todos os seres humanos meus amigos,
e ao mesmo tempo perdoar com todo meu coração aquele que me matará."


Quando nos vemos nos outros, o perdão surge espontaneamente. É um reconhecimento difícil reconhecer que todos nós temos o potencial para fazer ações más. É só as circunstâncias se reunirem... Esse reconhecimento é difícil porque fere nossa autoimagem e o nosso orgulho. Mas todos os santos que já passaram por este mundo, budistas ou não, tinham como prática essencial a humildade. O sábio, na humildade, sabe que é capaz de tudo. Por isso, ele toma providências rezando, meditando, buscando refúgio, purificando etc. Ele só irá parar de fazer isso quando atingir a meta final. Mas quando atingi-la, continuará fazendo não para si próprio, mas para dar exemplo aos outros, encorajando-os a seguirem esse caminho.

Quando reconhecemos em nosso coração todo o potencial do mal que ainda abrigamos, e que o mal que percebemos e experienciamos é apenas uma projeção cármica desses potenciais, nos sentimos aliviados e em paz, porque há uma esperança! E a esperança sou eu mesmo. Os potenciais de maldade podem ser purificados. Mas para isso, primeiro eu tenho que acreditar que eles existam em mim, tenho que reconhece-los.

Os outros são apenas projeções do meu carma. Quando alguém me trata mal ou me trata bem, é apenas a projeção do meu carma, é o meu carma amadurecendo, ora negativamente ora positivamente.

O meu carma me mostra como eu fui em vidas passada. Talvez isso fira o nosso orgulho. É por esse motivo que o sábio é humilde. Há uma música que diz: "Se todos fossem iguais a você...". Mas do ponto de vista do carma, todos são iguais a mim, ou melhor, todos são iguais ao que já fui. Ou seja, já que tudo depende do carma, a maneira como as pessoas me tratam mostra o jeito que eu tratava esta ou aquela pessoa em vidas passadas.

Então, vai aqui uma sugestão de prática: sempre quando virmos alguma situação errada acontecendo, nos implicarmos nela pensando: "Se está aparecendo para mim, eu tenho algum nível de responsabilidade [cármica] sobre o que está acontecendo". E então, fazer uma prática de purificação: recitar o mantra de Vajrassatva, gerar os quatro poderes oponentes, recitar a prece de confissão descrita acima.

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