sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Porque tenho que passar por isso?

Essa é uma das perguntas mais comuns, quando passamos por algum problema. Porque eu? Porque comigo? Porque... agora?!?



Buda diz que todas as nossas experiências, boas e más, são apenas o efeito das ações que fizemos nesta vida e nas vidas passadas.

Portanto, "não temos que passar" por nada. Estamos apenas vivendo os efeitos do que fizemos.

É como se eu fosse para a praia bem cedinho e ficasse o dia inteiro exposto ao sol. Ao final do dia, minha pele está vermelha, queimada e doendo. "Porque tenho que passar por isso?"

Do ponto de vista budista, essa pergunta não tem sentido. Estou com queimaduras de sol porque fiquei exposto ao sol sem nenhuma proteção. Se eu não tivesse ficado exposto ao sol, ou se tivesse usado alguma proteção, não teria me queimado.

Simples assim.

"Ah, mas eu não sabia, não percebi, estava mais preocupado em me divertir, achei que ia ser legal...".

Infelizmente, nenhum desses pensamentos nos protege de problemas e sofrimentos!

"Ah, mas eu não sabia" = a ignorância é a raiz de todos os nossos sofrimentos.

"... não percebi..." = a ignorância impede que percebamos as coisas.

"... estava mais preocupado em me divertir" = o apego desejoso é uma forma de ignorância. Ele nos faz agir contra nossos verdadeiros interesses.

"... Achei que ia ser legal..." = ignorância, apego desejoso, raiva, tudo isso são delusões, formas distorcidas de ver a realidade cujo fruto final é dor e sofrimento.

Quando entendermos corretamente a lei do carma, vamos substituir a pergunta "porque tenho que passar por isso" pela desejo "pelo que eu quero passar no futuro?"

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Links com o Dharma - Meditando com Renato Russo


Uma meditação a partir da música Pais e Filhos, de Renato Russo

Dorme agora, é só o vento lá fora

Acorda! Desperta! Não está acontecendo nada lá fora. Não existe dentro, não existe fora. O que parece acontecer "lá fora" é somente os ventos do carma, que a nossa ignorância projeta para fora de nós, como num sonho, e nos fazendo acreditar que é a realidade.

Quero colo! Vou fugir de casa! Posso dormir aqui com vocês? Estou com medo, tive um pesadelo, só vou voltar depois das três.

Não é esse o verdadeiro sentimento de refúgio? Quando o medo se apodera do nosso coração, o que fazemos? Esquecemos de buscar o colo dos Budas, sua amorosa proteção. Esquecemos de nos colocar sob seus olhares amorosos. Esquemos de nos voltarmos para as Três Joias Sublimes e Preciosas.



Me diz, porque o céu é azul? Explica a grande fúria do mundo

Nada é, tudo está. O céu é azul porque a mente o percebe azul. Nunca conseguirás uma fatia do céu azul para guardar em tua cômoda. A mente é a criadora de tudo.

"Buda, o Habilidoso, disse:
'Assim, todos os medos
E todos os infinitos sofrimentos
Surgem da mente'.

Quem criou intencionalmente as armas
Que ferem os seres nos infernos?
Quem criou aquele chão de ferro em brasa?
E de onde surgiram as tentadoras alucinações?"
(Shantideva, Guia do estilo de vida do Bodhisattva).

Portanto, não tenhas medo, não busques outra explicação ou outro refúgio.

Tudo está na mente. A mente é a verdadeira criadora. Não durmas. Desperta! Refugia tua mente nas Três Joias e a ilusão do que está dentro e do que está fora desaparecerão, como o vento.

sábado, 18 de junho de 2011

A prisão do carma

Anteontem, andando pela rua, passei por uma casa onde estava um cachorro. Ele começou a latir para mim e, por toda a extensão do portão, demonstrava sua raiva.

O que mais me chamou a atenção foi o seu sofrimento: ele latia freneticamente. Ele me via um inimigo, que precisava atacar.

Do meu lado, o que estava acontecendo? Alguns minutos antes, eu andava pela rua recitando o mantra de Avalokiteshvara, enquanto pensava ao mesmo tempo: “Que todos se libertem da dor. Que todos tenham felicidade pura”.

Quando passei por esse cachorro, continuei a recitar o mantra e a pensar nessa motivação. Mas o cachorro via em mim um inimigo.

Dois seres, eu e o cachorro. Dois mundos completamente diferentes.

O cachorro estava aprisionado no seu carma. Porque ele é um ser nascido animal, ele não pode se questionar sobre o que vê, percebe ou sente. Porque ele é um ser nascido animal, ele não consegue ver para além das aparências.

Geshe Kelsang Gyatso diz que uma das características de um renascimento animal é sentir grande medo. Medo surge da ignorância, de ignorar as características do que percebemos. E o medo é o responsável por transformar os outros em inimigos.

No caso do cachorro, ele via um inimigo em mim. Nada em mim dizia que eu queria atacá-lo, que eu o odiava. Mas era assim que ele me via. Porque?

Porque quando o cachorro entra em contato com outras pessoas, os potenciais cármicos negativos em sua mente amadurecem fazendo-o perceber os outros como inimigos. O inimigo que o cachorro vê é apenas uma projeção do seu próprio carma.

Mas não estamos tão longe da vida de um cachorro. Ambos, nós e os animais, temos mentes. A mente de um cachorro não é tão diferente da mente humana. Ambas têm muitos fatores mentais em comum, como por exemplo os cinco fatores mentais acompanhantes: sensação, discriminação, intenção, contato, atenção (Entender a mente, página 121). Esses cinco fatores mentais é o que definem uma consciência: consciência visual, consciência auditiva, consciência mental etc.

Porque nós e os animais temos mente, sentimos prazer e dor. Ambos, nós e eles, tentamos fugir da dor e prolongar nosso prazer. Ambos, nós e eles, criamos e experienciamos carma.

Até aqui, nada de diferente.

A diferença entre um ser nascido animal e um ser nascido humano é que os humanos podem conhecer sua própria mente. Os animais, não.

Por isso, podemos ter um renascimento humano e viver como um animal, como dizia o grande santo tibetano Milarepa (c. 1052 – c. 1135). Quando não questionamos a realidade do mesmo modo que um animal não a questiona.

Somente um ser humano pode se libertar da prisão do carma. Somente um ser humano pode dizer ‘Não’ aos seus hábitos de raiva, irritação, apego, vingança, ciúmes, inveja etc.

E é por isso que o caminho à libertação e à iluminação começam com o desenvolvimento do nosso amor, compaixão e sabedoria, sempre juntos.

domingo, 12 de junho de 2011

Ainda sobre o filme "Homens e deuses" (II)

O monge trapista Dom Christian de Chergé foi um dos monges brutalmente assasinados na Argélia, nos anos 90. Pouco antes de falecer, ele deixou uma carta testamento muito bonita.

Nessa carta, há um trecho que diz:

"Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal
que parece, infelizmente, prevalecer no mundo,
mesmo naquele mal que me mataria cegamente."


Essa citação tem algo de muito especial. É a nossa compreensão/fé budista de que tudo o que eu vejo, percebo e experiencio fazem parte da minha mente. E se fazem parte de minha mente, fazem parte de mim. É minha responsabilidade.

"Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal...", porque o mal aparece para mim. Se aparece para mim, há causas interiores em minha mente para que ele surja à minha percepção, como uma aparência... como num sonho.

Ainda ontem, me aconteceu uma coisa muito interessante. Na minha vizinhança, os vizinhos começaram a brigar. Palavras duras, feias. Comecei então a meditar: o que eu percebo não está separado da minha mente que percebe. Logo, essas palavras duras fazem parte da minha mente, porque estão aparecendo para ela.

Comecei, então, a recitar o verso de confissão da Prece dos Sete Membros: "Confesso os meus erros em todos os tempos... confesso os meus erros em todos os tempos... confesso os meus erros em todos os tempos...".

Em pouco tempo, a discussão acabou. Porque? Porque eu purifiquei a causa para perceber pessoas brigando. Pessoas brigando não existem independente da mente que percebe pessoas brigando. Como num sonho. (cf. citação do Sutra Rei da Concentração, no livro Compaixão Universal)

É um ensinamento muito profundo, que une a lei do carma com a sabedoria que entende a vacuidade, como duas faces de uma mesma moeda.

A frase "Vivi o bastante para saber que sou também um cúmplice no Mal..." é a premissa necessária para o que Dom Christian de Chergé escreve depois:

"Gostaria que, quando vier o tempo, ter o momento de lucidez
que me permitira pedir o perdão de Deus
e de todos os seres humanos meus amigos,
e ao mesmo tempo perdoar com todo meu coração aquele que me matará."


Quando nos vemos nos outros, o perdão surge espontaneamente. É um reconhecimento difícil reconhecer que todos nós temos o potencial para fazer ações más. É só as circunstâncias se reunirem... Esse reconhecimento é difícil porque fere nossa autoimagem e o nosso orgulho. Mas todos os santos que já passaram por este mundo, budistas ou não, tinham como prática essencial a humildade. O sábio, na humildade, sabe que é capaz de tudo. Por isso, ele toma providências rezando, meditando, buscando refúgio, purificando etc. Ele só irá parar de fazer isso quando atingir a meta final. Mas quando atingi-la, continuará fazendo não para si próprio, mas para dar exemplo aos outros, encorajando-os a seguirem esse caminho.

Quando reconhecemos em nosso coração todo o potencial do mal que ainda abrigamos, e que o mal que percebemos e experienciamos é apenas uma projeção cármica desses potenciais, nos sentimos aliviados e em paz, porque há uma esperança! E a esperança sou eu mesmo. Os potenciais de maldade podem ser purificados. Mas para isso, primeiro eu tenho que acreditar que eles existam em mim, tenho que reconhece-los.

Os outros são apenas projeções do meu carma. Quando alguém me trata mal ou me trata bem, é apenas a projeção do meu carma, é o meu carma amadurecendo, ora negativamente ora positivamente.

O meu carma me mostra como eu fui em vidas passada. Talvez isso fira o nosso orgulho. É por esse motivo que o sábio é humilde. Há uma música que diz: "Se todos fossem iguais a você...". Mas do ponto de vista do carma, todos são iguais a mim, ou melhor, todos são iguais ao que já fui. Ou seja, já que tudo depende do carma, a maneira como as pessoas me tratam mostra o jeito que eu tratava esta ou aquela pessoa em vidas passadas.

Então, vai aqui uma sugestão de prática: sempre quando virmos alguma situação errada acontecendo, nos implicarmos nela pensando: "Se está aparecendo para mim, eu tenho algum nível de responsabilidade [cármica] sobre o que está acontecendo". E então, fazer uma prática de purificação: recitar o mantra de Vajrassatva, gerar os quatro poderes oponentes, recitar a prece de confissão descrita acima.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Existe certo ou errado no budismo?

Ontem, conversando com uma pessoa, surgiu uma questão muito interessante.

Estávamos conversando sobre a prática do budismo no dia a dia, e então ela disse o seguinte: "Mas o que há de errado em comer carne? Afinal de contas, se observarmos a natureza, muitos animais matam para comer e sobreviver. O que há de errado nisso?".

Acho essa questão muito boa. Ela nos leva a perceber que, no budismo, não existe certo ou errado. O que existe é felicidade e sofrimento, ou melhor dizendo, ações que nos levam a experienciar felicidade e ações que nos levam a experienciar sofrimento.

Quando um ser vivo mata outro ser vivo, sua mente entra em contato com a morte, com a ação de matar. Porque sua mente entrou em contato com isso, no futuro ela irá experienciar a mesma ação, só que do outro lado: sendo morta, a vida lhe sendo tirada por alguém.

Basta perguntar: quando eu experienciar isso, será uma experiência agradável ou desagradável?

De modo análogo, quando um ser vivo respeita a vida de outro ser vivo e protege sua vida, sua mente entra em contato com respeito pela vida, com proteção da vida. Porque sua mente entrou em contato com isso, no futuro ela irá experienciar essa mesma ação, só que do outro lado: sua vida sendo respeitada, sua vida sendo protegida.

Então perguntamos novamente: quando eu experienciar isso, será uma experiência agradável ou desagradável?

Na minha opinião, não dá para entender profundamente a lei do carma sem entender como a mente funciona e, principalmente, sem entender que tudo é uma aparência à mente, como um sonho. (Sutra Rei da Concentração).

Buda não inventou a lei do carma, e também não é seu legislador. Buda apenas entendeu como a nossa mente funciona, percebe e experiencia as coisas. E a lei do carma é apenas uma parte de como nossa mente funciona e percebe as coisas.

domingo, 5 de junho de 2011

Ser um bodhissatva no dia a dia

No livro Contemplações significativas, Geshe Kelsang diz, comentando Shantideva:

"Em resumo, precisamos permitir que todas as nossas ações de corpo, fala e mente se voltem para a felicidade dos outros. Raramente encontramos tal conduta benéfica neste mundo. (pàg. 211)"
Pois bem. Na semana passada, vi uma reportagem que mostra como um Bodhissatva age no mundo, misturando compaixão e criatividade. Vejam só o vídeo abaixo:



Pois é! Se esses alunos, professores e alunos são Bodhissatvas ou não, ninguém pode saber, e esse debate também não interessa muito. O importante é que eles agiram como um bodhissatva. E quando agimos como um bodhissatva, naquele exato momento somos um bodhissatva.

Nossa dificuldade é nos manter concentrados nessa motivação e nesse ideal, o máximo de tempo possível durante o dia. Quando agimos como um bodhissatva durante cinco minutos, fomos um bodhissatva durante esses cinco minutos. Se conseguirmos agir como um bodhissatva durante 1 hora, seremos um bodhissatva durante 1 hora... e assim por diante.

Isso nos remete a uma outra discussão. Normalmente, costumamos dizer: "Sou uma pessoa boa, porque não faço mal a ninguém".

Se pensarmos cuidadosamente sobre a frase acima, vamos ver que "porque não faço mal a ninguém" não é uma conclusão lógica de "sou uma pessoa boa".

Somos bons quando fazemos ações boas. E somos maus quando fazemos ações más. Se não fazemos o mal para alguém, sem que isso signifique que estamos praticando ativamente o bem, somos pessoas neutras. E a neutralidade não é um caminho espiritual.

A chave dessa reflexão é: precisamos praticar ativamente o bem, e não ficar contentes com o falto de que simplesmente não estamos fazendo mal para ninguém. Esse é o caminho da libertação.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Uma pergunta...

E se tivéssemos que ser budistas sem usar a boca?

Vou me explicar melhor...

O que será que aconteceria se tivéssemos que explicar ou mostrar aos outros que somos budistas apenas pelo nosso exemplo físico? A maneira como gesticulamos, andamos, abrimos ou fechamos portas?

A maneira como comemos, a nossa postura física, o modo como olhamos?

Como expressaríamos nossa compaixão universal e bodichita apenas por meio das nossas ações físicas?

Como poderíamos ensinar o Darma exclusivamente por meio do nosso exemplo físico, sem usar das palavras?

Acho que seria um exercício estimulante!


Como usar a nossa fala

Acredito que as palavras de Buda Shakyamuni abaixo podem dar uma bela reflexão e meditação diárias:


"No caso de palavras que o Tathagata sabe que não correspondem aos fatos, inverdades, não trazem nenhum benefício ( ou não estão conectadas com o objetivo ), antipáticas e desagradáveis para os outros, ele não as diz.


No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, não trazem nenhum benefício, antipáticas e desagradáveis para os outros, ele não as diz.


No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, benéficas, porém antipáticas e desagradáveis, ele possui o bom senso do momento correto de dizê-las.


No caso de palavras que o Tathagata sabe que não correspondem aos fatos, inverdades, não trazem nenhum benefício porém são simpáticas e agradáveis para os outros, ele não as diz.


No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, não trazem nenhum benefício, porém são simpáticas e agradáveis para os outros, ele não as diz.


No caso de palavras que o Tathagata sabe que são fatuais, verdadeiras, benéficas, e simpáticas e agradáveis para os outros, ele possui o bom senso do momento correto de dizê-las. Por que isso? Porque o Tathagata tem compaixão pelos seres vivos."


Buda Shakyamuni (Abhaya Sutta, Majjhima Nikaya 58).

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O budismo é difícil?

Muitas pessoas acham que é difícil praticar o budismo na vida diária, por ele ser muito exigente: existe a lei do carma, a gente não pode mentir etc.

Em verdade, o que é difícil é parar de projetar nos outros nossos desejos e sofrimentos. O que é difícil é parar de culpar os outros pelos nossos problemas.

Gosto de pensar que, no budismo, precisamos ser o mundo que gostaríamos que existisse. Por exemplo, se eu quero um mundo onde possamos confiar uns nos outros, eu primeiro tenho que ser uma pessoa confiável.

Para isso acontecer temos que nos relacionar com o nosso eu de um modo diferente do que até agora vimos fazendo.

Por isso, não é o budismo que é difícil. O que é difícil é nos responsabilizarmos por nossas ações de corpo, de fala e de mente.

Temos duas opções à nossa frente: OU queremos um ser sagrado que seja a nossa imagem e semelhança e confirme o que a gente faz e pensa OU queremos um ser sagrado que nos liberte das armadilhas do nosso próprio eu e suas vontades autocentradas: a fonte de todo o nosso sofrimento.

É exatamente isso que é difícil: quem abre mão do seu eu? É um longo aprendizado, onde a meditação é a pedagogia.

Não há nada mais difícil para o eu do que se ver implicado no que faz. Quando algo acontece errado conosco, qual a nossa participação nisso? 10%, 20%... 50%?

Quando alguém faz algo errado... ah!, como somos perspicazes em mostrar nos mínimos detalhes o que deu errado e porque. E quanto tempo demoramos para desculpar essa pessoa? Mas quando somos nós que falhamos... ficamos irritados com pessoas que fazem análises perspicazes sobre a nossa conduta, nos seus mínimos detalhes. E em quanto tempo gostaríamos que fôssemos perdoados?

Se há alguém difícil aqui, não é o budismo! O budismo apenas ‘levanta a bola’ dessa questão.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Você é budista? Então, em quem você acredita?

Ontem perguntaram para mim se eu era budista e em quem acredito: em Buda ou Deus.

Sinceramente, eu não gosto desse tipo de pergunta. Acho que ela empobrece a visão que podemos ter da vida espiritual.

Se não tomarmos cuidado, podemos transformar “eu acredito em...” numa prática de negação e exclusão. É como transformar a vida espiritual num jogo de futebol: se eu acredito no Time A, não posso falar que o Time B joga bem. Isso não faz sentido.

O que eu respondi foi o seguinte: “Eu acredito no amor e na compaixão universais. E para mim, elas aparecem, elas assumem a forma de Buda Shakyamuni”.

Buda ou Deus são nomes. São nomes que representam ou significam algo. E é muito fácil cair na armadilha de adorar nomes. Nomes dividem. Experiências unificam.

Acho que dizer que budista é quem acredita em Buda é muito pouco. Não dá para separar a Jóia Buda da Jóia Darma. Para mim, budista é quem coloca em prática os ensinamentos de Buda. É por isso que Buda falava: “Quem quer ser meu discípulo deve usar sua vida para tentar não prejudicar nenhum ser vivo. Esse é o meu verdadeiro discípulo”.

Em verdade, é nisso que acredito. E acredito em Buda porque ele me ensina como me tornar melhor, como desenvolver minha capacidade de amar e de ter compaixão, como reduzir o meu egoísmo e aumentar meu altruísmo.

Outras religiões fazem isso? Sim, fazem. E de maneiras tão belas como as do budismo. Mas eu prefiro a beleza do budismo. E isso é muito mais do que "acreditar", como popularmente falamos. É entender nossa condição e nosso papel no mundo, e trilhar um caminho espiritual que nos ajude a realizar o que é melhor para o conjunto dos seres vivos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Dando um giro pelo twitter (18 de maio)

“Ignorância é ignorar o que é a verdade. Sabedoria é ignorar o que é falso”. (@LunaKadampa)


Meditar na morte ñ serve p/ ficar corajoso, serve p/ extrair a essência da vida atual. Corajosos podem desperdiçar a vida; um sábio, não.” (@MeditarBH)


Não é suficiente amar os seres vivos como um todo. Precisamos aprender a amar cada um deles individualmente”. (@kelsangdorje)


A língua como uma faca afiada... mata sem derramar sangue. Buda.” (@BuddhaDaily)


Conhecer os preceitos de cor mas falhar em praticá-los é como acender uma lâmpada e, então, tapar os olhos. Ditado tibetano”. (@Buddhism_Now)

Sobre um filme: "Homens e Deuses"

Outro dia assisti no cinema um belo filme francês, “Homens e Deuses” (Des Hommes et des Dieux, França, de Xavier Beauvois, 2010).

Conta a história real de sete monges católicos que vivem na Argélia, nos anos 1990. Era um momento difícil para esse país, por conta do extremismo islâmico que estava surgindo.

Esses monges passam a viver cada dia como se fosse o último dia, porque a qualquer momento o mosteiro em que vivem podia ser invadido pelos extremistas.

Um dos monges reza para Deus para que Ele desarme os terroristas. Esse monge pede para que os terroristas sejam desarmados de suas armas e também em seus corações.

Mas pouco a pouco, esse monge percebe que, dentro de si, também há raiva. E então, ele muda a sua oração. Ele passa a rezar: “Por favor, Deus, desarme-me primeiro, e depois desarme eles”.

Penso que, do ponto de vista budista, isso significa a renúncia mahayana.

Por exemplo, “eu quero um mundo melhor, com mais paz”. Em geral, ficamos preocupados com os outros que não deixam o mundo em paz. Mas do ponto de vista da renúncia mahayana, toda falha que vejo fora de mim procuro, primeiro, identificar em mim. O que há em mim que não permite que o mundo seja melhor? O que há em mim que não permite que haja mais paz no mundo? Quanto existe ainda dentro de mim de intolerância ou raiva?

Renúncia é o desejo de parar de sofrer para sempre. Sofremos por causa das nossas falhas. Quando vemos falhas nos outros, podemos transformar isso num ótimo aprendizado, num processo de autoconhecimento profundo: procurar dentro de nós o potencial de tudo o que vemos fora.

A renúncia budista, e em especial a renúncia mahayana, sublinha que temos que ser o que desejamos para o mundo. Se queremos um mundo mais puro, nós primeiro temos que ser mais puros. Se queremos um mundo mais em paz, nós primeiro temos que ter paz.

E os outros? Os outros precisam apenas do nosso amor...

segunda-feira, 16 de maio de 2011

E depois da comoção... vem o quê?

Às vezes, através dos jornais e da TV, nos deparamos com grandes tragédias causadas por desastres naturais.

Somos tomados por grande comoção. Ficamos emocionados. Muitas vezes nosso medo e insegurança aumentam. Mas também nos tornamos mais solidários, lembramos de rezar...

E depois de algumas semanas... tudo se foi: a comoção, a emoção, a solidariedade, as preces.

E passamos a nossa vida assim, balançando entre a comoção e a indiferença.

Será que isso poderia ser diferente? A resposta é: sim.

No Brasil, por exemplo, morrem cerca de 3 mil pessoas todos os dias. Essa é a taxa de mortalidade medida pelo IBGE em 2005 (6,31 mortes para cada 1 mil habitantes).

Se nos lembrássemos disso, poderíamos rezar todo os dias para essas 3 mil pessoas que faleceram, desejando-lhes paz e que possam ter renascimentos afortunados. Poderíamos rezar também para outras tantas 3 mil ou 6 mil ou 9 mil pessoas que estão vivas, mas que perderam seus entes queridos.

Se para cada uma dessas 12 mil pessoas (3 mil que faleceram e 9 mil que estão tristes) pudéssemos rezar “Que ela seja feliz, que ela encontre paz interior, que ela não sofra”... de que tamanho nosso coração se tornaria?

Nosso coração ficaria repleto de amor e compaixão. Amor e compaixão são verdadeiras causas de paz interior.

Imagine o seguinte: se a compaixão e amor por uma pessoa fosse como a chama de um palito de fósforo, qual o tamanho da chama de 12 mil palitos de fósforo?

Se pudermos fazer isso todos os dias, certamente não seremos mais a mesma pessoa. E não ficaremos mais reféns das comoções: seremos uma usina de amor, compaixão e preces.

sábado, 14 de maio de 2011

Espiritualidade começa em casa

É comum acharmos que a nossa vida é uma coisa... e que a prática espiritual é outra coisa, totalmente separada e diferente da vida diária.

Por isso, nos sentimos divididos, a ponto de dizermos: "Hoje não tive tempo para praticar".

Isso não faz sentido.

O budismo ensina que o caminho à libertação e iluminação consiste em mudar nossas intenções: de egoístas para altruístas, de irritação ou raiva para paciência, de apego ou avareza para generosidade, de intolerância para amor etc.

O melhor momento e lugar para mudar nossas intenções é quando estamos interagindo com os outros. E fazemos isso o dia inteiro, a não ser que sejamos um eremita! Como diz Shantideva, um mendigo não é um obstáculo para quem quer praticar generosidade.

Podemos praticar o dia inteiro, prestando atenção em nossas intenções, e transformá-las nas atitudes corretas do Darma.

Por isso, é contraditório rezar "Que eu me torne um Buda para o benefício dos outros...", se em casa eu não coopero para o bem-estar e a harmonia da minha família ou da vizinhança.

A prática de amar todos os seres vivos começa em casa. E a espiritualidade também.

O que é ser budista?

Ser budista é seguir os ensinamentos de Buda, não Buda ele mesmo.

Às vezes cantamos louvores a Buda, fazemos fartas oferendas, dizemos que daríamos nossa vida pelo Guia Espiritual etc.

Mas como tratamos os outros? Às vezes com indiferença, irritação. Ou fazemos as coisas pensando em nosso próprio interesse.

Geshe Kelsang Gyatso diz, comentando Shantideva:

“Como praticantes de Darma, é incoerente confiar em Buda e, apesar disso, continuar a prejudicar os seres sencientes. Seria como agir bondosamente com uma mãe e, pelas costas, bater em seus filhos. Do mesmo modo que prejudicamos a mãe ao prejudicar seus filhos, desagradamos aos Budas sempre que temos más intenções em relação aos seres sencientes”. (Contemplações significativas, página 264)

Seguimos Buda quando, pelo menos, usamos as situações diárias da nossa vida para tentar respeitar ativamente os outros. Todo dia um pouquinho mais.